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Começo pelo final de "A Morte de Virgilio", um belo presente de Natal, entre todos as  supresas e raspadinhas sem prémio. Hermann Broch, na tradução preciosa de Adélia Silva Melo, termina em oposição ao início, parece-me agora, e contudo não posso estar certa a tal ponto o tempo, digo, a cronologia se baralha e suspende sem nunca nos afastar. Pelo contrário, um livro-íman lê-se e não queremos parar e esta impossibilidade para quem tem outras obrigações resolve-se com a maravilhosa expectativa do retorno a ele, boa ansiedade, e o que Broch faz de nós? Leitores, escritores, virgílios e Verbo: «Verbo: não era capaz de o reter, e não o devia reter; o Verbo tornara-se para ele inconcebível e inexprimível pois estava para lá da linguagem». 

Cheguei ao fim desta sinfonia, como lhe chama Steiner, e agora, Maria de Fátima estou órfã de Broch. 

Tenho aqui de lado as 1000 e tal folhas impressas. As palavras e desenhos, apontamentos e imagens são todas da minha autoria. Sinto-as pobres, coitadinhas e elevei o grau de exigência. E se este outro livro nunca for editado? Mal ao mundo não virá. Apenas uma leve sensação de desperdício. Um dia propuseram-me pagar a edição, uma parte desta. O que ri no meio da rua, a calçada ao sol, toda eu encalorada e feliz. Não tenho dinheiro e mesmo que o tivesse nunca tal me passaria pela cabeça. Antes editar por mim, em papel escolhido a dedo, tipografia da emigré, que nem sei que dela é feito. Entrelinhagem para uma leitura que facilite a vida, já que a caldeirada de temas, apuntes, histórias, replicações é de tal sorte que se exige algum heroísmo de quem imagino como a pessoa leitora. Confusa. Já o outro assim era. Escrevi 600 páginas, para mais, nunca para menos e levei-as todas para o bloco operatório. Esquartanhei tudo. Que contínuo? «Onde Estás». Recordo-me do aviso: «Nunca irás ao Carlos Pinto Coelho». E depois fui, flutuante como o reino do Prado Coelho que me enervou com uma opinião favorável, mas de certo modo inesperada para o meu sistema nervoso. 

Ficámos amigos. Interrompemos a amizade e sobreveio a porcaria da morte. Morreu num certo dia 25. Já nem sei. Fiquei triste, sentada a ler os «que nunca escrevi». Ah, senti-me órfã, que raio de condição, uma companhia. O Rolo Duarte, agora o percebo, foi-se na idade de ouro. Gostava de o ter aqui porque acredito ser possível continuar a rir como sempre rimos em família. 

Ouvi hoje na Antena 2 as bandas sonoras dos filmes de Fellini. Um caso de esquecimento à espera de resgate. Um dos realizadores favoritos do Rolo Duarte que o entrevistara em Lisboa. No arquivo familiar existem essas fotografias. Com o pai aprendi os nomes dos cineastas antigos, das actrizes pulposas e íamos apenas os dois ver os Manoel de Oliveira todos. O último, Le Soulier de Satin, deixou-nos de bem com este gostar próximo da mania. Dizia-se então muito mal dos filmes Oliveira.  

Volto a Broch. Steiner aproxima-o, justamente, de Joyce. Um outro fabuloso Joyce, sobretudo porque nos parece impossível. 


A política interessa muito. Mas está a morrer como o feminismo entregue a mulheres da classe média gourmet. É neste sentido que a Camille Paglia me entra casa dentro, uma oferta preciosa e atenta da Madalena. Camille, então, pelo que tem de provocador e inconformada. Leio-a com um extremo prazer. Sublinho-a entre gargalhadas. É muitíssimo americana, reactiva. Gosto, mesmo quando desilude e se limita a ideias condicionadas pelo meio onde se move. A vida das mulheres sempre foi lixada. Não me apetece pensar em Matzeneff porque me enjoa, enoja. 

Quem tramou a vida a Joacine? Por onde anda o assessor dela? Quanta infantilidade risível e inútil. Como bem perguntaria o outro: «qual é o ganho?» Fica Joacine, fica. Tens ordenado certo, vais ouvir aqueles senhores e senhoras. Nunca pertenceste ao Livre do Tavares com estudos. Um tipo «muito culto» com a última do Público só para ele disparatar semanalmente as lições de história. O Tavares começa por nos ensinar tudo o que ocorreu em 1800 e carqueja, 1383 e tem um jeitaço para se orientar. No fundo apenas isto. É o que penso desde sempre. No início lia-o e ficava a segurar a cabeça entre as mãos: «és fino, Tavares». Joacine, ando a pensar isto em loop: és de outro universo. Não tens nada de nada que ver com estes finórios. És tramada e verde quando deverias ser a cana da Índia exposta às grandes depressões. Luta de classes. Joacine, «levantada do chão», chata como a potassa e sem queda para o cinismo das intrigas palacianas. Aprende. 

O grande, redundante, imenso artista, empresário Cabrita Reis deu-nos gozo com a sua obra, melhor dizendo, com um monumental testemunho Cabrita-ensina-Arte-ao-povão que, não por acaso, nunca lê o Público, mas antes o Correio da Manhã. Não esperava rir, cuspir chá escaldante nas calças e entre ai e ui engolir o pão ainda sem manteiga. Não devia comer manteiga. Todos os meus gestos alimentares são agora condicionados pela informação dos prós e contras. Aos 61, a caminho dos 62, preocupo-me com a saúde. Pensando bem, sempre fui hipocondríaca militante. De cada vez que ia ver o Pedro ausente do quarto ou adormecido, entrava, pé ante pé e desinfectava-me tanto que resolvi andar com o meu próprio líquido purificador. 

Este Inverno levou-nos o Gustavo. Chorei, creio, por ele e que me desculpem as almas, mas chorei porque me é tão difícil chorar. 

A Madalena e a Margarida têm «A Casa e os Cães» a fazer um caminho delicado e sem pressas. O filme é belo, não me comoveu porque estava muito ocupada a sentir-me orgulhosa, alegre, feliz. A Madalena sabe que, no imediato do acontecimento, sou sempre lacónica nas observações, poupada. Fico a pensar e só depois sou capaz de elaborar e percorrer a obra como esta merece. E «A Casa e os Cães» merece muito. 

Esta geração «arrasa». O próximo nome, assim o queira este meio lixado, é o de Flávio Gonçalves. 

Todos os dias bebo chá na Linda onde não preciso de pedir. Sento-me e o bule vem ter comigo e bom dia. O papel dos jornais cada vez mais caros. Aproveito para ler alguns sem pagar. Volto para casa com o Público. Nem sempre merece os euros. Os montes de Expresso não são mais o que eram, cinco Públicos, três i e um montinho de Correios. Os de desporto não me chamam porque não percebo um boi de futebol. É um desporto, não é? O desporto-rei; o futebol é mesmo assim.

«Ces nihilistes-là sont des grands créateurs. Et les juristes sont peut-être les plus grands de tous.», Deleuze, La pratique du Droit. 

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